Os mais céticos exclamariam: “Quanta ascensão, nem parece um filme nacional!”

quarta-feira, 9 janeiro, 2008 às 10:20 | Publicado em José Bruno Marinho | Deixe um comentário
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A imagem do Brasil no exterior é, de fato, permeada por clichês e estereótipos. O olhar estrangeiro capta, a priori, o que lhe é diferente, o que lhe é estranho, eliminando todo o restante. Isso porque idéias pré-concebidas – congeladas por filmes que reduzem o diversificado celeiro de nacionalidades verificadas no continente a um único tipo “latino”, caricatural ao extremo – são reproduzidas em múltiplas línguas, em escala mundial, educando de maneira notavelmente errônea os espectadores mais desavisados e menos conscientes de até onde aquelas imagens apresentam consonância com a realidade. A estranha relação existente entre o estrangeiro e nós, brasileiros, é caracterizada por uma condição de diferença que, mais do que sentida, foi criada e imposta ao longo dos anos. Não raramente, o olhar de um público estrangeiro sente dificuldades em alcançar o além do clichê e, por isso, inicialmente estranha quando se depara, na tela grande, com uma mulher brasileira com um quê de raciocínio, por exemplo (“como assim ela não é apenas sensualidade?”, espectadores de outros países podem se questionar). Porém, durante décadas, muitos preferiram, uma vez passado o estranhamento inicial, reaceitar aquela idéia mitificada que já cultuavam há tempos – afinal, é mais cômodo e prático se submeter aos tentadores simplismos do senso-comum do que admitir a existência de realidades mais complexas.

No entanto, é justamente na contramão dessa prática de assimilar o irreal que podem ser encaixados os recentes filmes pernambucanos que fazem sucesso diante de platéias estrangeiras. Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2006); Baixio das Bestas (Cláudio Assis, 2007) e Deserto Feliz (Paulo Caldas, 2007) são exemplos de produções cinematográficas locais que conseguem comunicar e que têm seu valor reconhecido sem abandonar uma posição de fidelidade aos ideais de seus realizadores. Ou seja, sem ceder espaço à tentação dos estereótipos que facilitariam a compreensão (ou seria aceitação?) da obra fílmica Brasil afora. E, com isso, distanciam-se daquele obsoleto clichê de paraíso tropical onde o Carnaval, as mulheres bronzeadas e o futebol são onipresentes e imprescindíveis. E vão além: funcionam como um verdadeiro espelho que revela um panorama da história e/ou da sociedade local. Ao retratarem um Brasil a partir de uma realidade social, até certa parte, ainda inédita aos olhos externos, eles fazem do entretenimento um exercício de pensamento e continuam a encantar e a surpreender pessoas das mais distintas culturas e nacionalidades com um cinema de imagens gritantes que convida a pensar.

Na verdade, todo esse vigor do qual se alimenta a caracterização do cinema produzido atualmente em Pernambuco é fruto de um certo descontentamento e uma certa inquietude por parte daqueles realizadores que conviveram, por um longo período de tempo, com a ausência de condições favoráveis e estimuladoras à produção cinematográfica, vendo-se habitando um celeiro marcado pelo marasmo e pelo vazio. Sem uma estrutura de produção, ou seja, em meio à carência de recursos financeiros, técnicos e humanos, assim se iniciou a retomada do cinema pernambucano. Esta ocorreu mais pela vontade e iniciativa daqueles que pretendiam se consolidar na carreira cinematográfica sem precisar se deparar com a migração a outro Estado como condicionante para tal. E menos pela existência de um cenário que acenasse favoravelmente a uma mudança radical. Impulsionado pelo rancor e empenho destes poucos, o cinema pernambucano ressurgiu e, desde então, vêm sendo marcado por um conteúdo visceral, de imagens urgentes e mensagens diretas. Através de filmes autorais, marcados por notável singularidade, a produção cinematográfica local afronta uma indústria e um mercado que rejeitam o diferente e tudo aquilo mais que ainda não foi imposto o suficiente para ser considerado garantia de sucesso e, portanto, digno de investimentos. É como se, mesmo sendo produzidos em meio a tantas limitações, o os filmes pernambucanos fossem dotados de um vigor notável e estivessem sempre à espera que novos olhares (e por que não prêmios também?) surjam para registrar e difundir toda essa vitalidade.

Mais de uma década depois do lançamento de Baile Perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1997) – filme-chave da retomada do cinema pernambucano, pois pôs fim a um período de quase 20 anos sem a produção de longas-metragens locais -, a safra recente dos filmes pernambucanos vem sendo bem recebida dentro e fora das fronteiras nacionais. O nível das qualidades e dos acertos dessas obras fílmicas assim como do talento dos seus diretores pode ser medido, em especial, por meio da repercussão que obtiveram na maioria dos festivais nacionais e internacionais nos quais foram exibidos. No âmbito nacional, as participações e premiações em festivais vieram a ratificar Pernambuco como uma referência em se tratando de cinema. Nosso estado é tido, atualmente, como o principal pólo de produção audiovisual do País situado fora do eixo Rio – São Paulo. No panorama internacional, os inúmeros convites e prêmios de festivais trouxeram não apenas reconhecimento, como também prestígio artístico de alto padrão, algo que muitos filmes comerciais e com maior poder de penetração no mercado, ainda que muito tentem, simplesmente desconhecem.

O acesso dos filmes pernambucanos aos mais renomados festivais de cinema do mundo – Cannes, Berlim, Veneza, Roterdã, entre outros – tem se revelado freqüente nos últimos anos. Em 2003, Cláudio Assis viu-se participando, com o seu Amarelo Manga, do Festival de Berlim. Dois anos depois, foi a vez de Lírio Ferreira promover a estréia do seu longa Árido Movie na presença da platéia do Festival de Veneza. Em fevereiro do ano passado, Cláudio Assis surpreendeu novamente com seu mais recente filme, Baixio das Bestas, que conquistou um dos três Tigers de Melhor Filme da 36ª edição do Festival Internacional de Filmes em Roterdã, na Holanda. Além do troféu, o cineasta pernambucano dividiu, com os outros dois vencedores, a premiação total de quase dez mil euros oferecida pelo festival que já se consolidou como um dos eventos mais importantes do cinema independente mundial. No discurso de premiação, o júri creditou sua escolha pelo longa-metragem brasileiro como um dos premiados do ano à “crueza, energia e força visual em uma história contundente no processo de degradação moral e social de um Brasil de excluídos”. Além de valorizar o cinema visceral praticado por Assis, tal prêmio atraiu publicidade ao seu mais novo filme. Como conseqüência da consagração no festival, Baixio das Bestas foi exibido nos cinemas e na televisão pública da Holanda e mais: adquiriu a atenção dos produtores de outros festivais de cinema não apenas para a obra em si, mas, sobretudo, para o iniciante cineasta, o qual passou a gozar do respeito por parte dos profissionais da área. No dia seguinte à premiação, Cláudio Assis acordou com mais do que um prêmio de um festival que contou com mais de 300 filmes (entre curtas e longas) competindo entre si e foi prestigiado por cerca de 370 mil pessoas. Na verdade, ele encontrou em suas mãos o passaporte rumo a um caminho menos árduo na heróica jornada de conseguir financiamento de produtoras e co-produtoras para os seus projetos futuros.

Uma das maiores honrarias já experimentadas pelo cinema pernambucano data, porém, do lançamento estrangeiro de Cinema, Aspirinas e Urubus. O primeiro longa-metragem de Marcelo Gomes adquiriu mais de 40 prêmios em festivais nacionais e internacionais. Com uma história de ambientação regional – porém, de alcance universal -, o filme conquistou aplausos das mais diversas nacionalidades, arrancando também elogios nos idiomas os mais distintos. Exibido em 2005 na mostra Un Certain Regard (“Um Certo Olhar”) do Festival de Cannes, Cinema, Aspirinas e Urubus recebeu o Prêmio da Educação Nacional, concedido pelo Ministério de Educação da França. Em nota à imprensa, o júri da premiação justificou a escolha final de conceder o prêmio ao primeiro filme de Marcelo Gomes – entre aproximadamente 1.600 produções cinematográficas inscritas em tal mostra paralela – por enxergar no longa um cinema raro, incisivo e rigoroso, situado no terreno fronteiriço entre documentário e ficção e possuidor de numerosas trilhas artísticas e pedagógicas que fazem de Cinema, Aspirinas e Urubus um exemplo incontestável de uma obra de arte.

No Festival de Cannes, a repercussão do filme, que traz a história de uma amizade construída entre um nordestino humilde e um alemão fugitivo da guerra, foi particularmente grande. No discurso da entrega do prêmio ao cineasta pernambucano, os jurados afirmaram terem sido surpreendidos diante de um interessante e peculiar tratamento cinematográfico de uma história humana carregada de esperança e que oscila com maestria e segurança entre uma abordagem quase documental e um olhar extremamente poético. “Nós fomos seduzidos pelos dois personagens, tanto pela interpretação dos dois atores [o brasileiro João Miguel e o alemão Peter Ketnath] como pela composição e pela evolução dos personagens que eles interpretam, além da ambigüidade da sua relação com os outros e a reclusa dos clichês”. E, partindo da premissa de que – durante a realização de um filme – o diretor lida constantemente com expectativas e intuições que só serão correspondidas (ou não) quando da exibição da obra a um público, Marcelo Gomes deve ter, de fato, ficado tão emocionado quanto satisfatoriamente alegre com as palavras finais do discurso do júri acerca da sua primeira produção cinematográfica. Aquelas diziam: “Ainda que pertença a uma cinematografia pouco difundida, esse filme, que se insere na tradição cinematográfica do road movie e se inspira no neo-realismo, possui uma característica essencial do cinema, que é a capacidade de mudar o nosso olhar sobre o mundo”.

Em recente entrevista à Folha de S.Paulo, o diretor pernambucano traduziu em palavras toda a sua satisfação com os elogios da crítica francesa ao seu primeiro filme e com a premiação conquistada em Cannes. Questionado sobre o que representava para ele, um diretor nordestino que produz fora do eixo Rio – São Paulo, chegar ao ponto de ter logo seu primeiro longa reconhecido em tal festival, Gomes respondeu: “Eu acho que dá um alento para os cineastas que estão espalhados pelo Brasil. Mostra que é possível fazer cinema, basta ter determinação. Cannes está aberto não só para cineastas que têm uma cinematografia mais estabelecida. Está aberto para cineastas que vêm de Pernambuco também”. Não apenas Cannes, caro Gomes. Outros festivais também. Os fatos ratificam que a produção cinematográfica pernambucana, ao se permitir trilhar caminhos mais ousados e experimentais, tem recebido aplausos e elogios do público, contemplação e opiniões favoráveis por parte da crítica e premiações numa freqüência que surpreende e numa quantidade que impressiona. E o mais novo responsável por garantir a continuidade dessa fase incontestavelmente histórica e frutífera, tanto quanto inédita, para o cinema produzido e praticado em Pernambuco atende pelo título de Deserto Feliz. O filme do pernambucano Paulo Caldas, que só estreará nas telas nacionais no primeiro semestre de 2008, já construiu, porém, uma trajetória internacional. No ano passado, foi selecionado para integrar a concorrida mostra Panorama do 57º Festival de Berlim, na Alemanha, além de garantir a Caldas o prêmio de Melhor Diretor no Festival Internacional de Guadalajara. Em terras brasileiras, o reconhecimento do valor e das qualidades de Deserto Feliz descortina-se nos vários Kikitos conquistados pelo filme no último Festival de Gramado.

Enfim, o fato é que os cineastas fazem filmes para que estes sejam vistos e, quanto mais pessoas assistem a uma obra fílmica, mais realizado sente-se o seu diretor. Entretanto, por mais qualidades ou méritos que possuam, dificilmente os bons filmes nacionais conseguem impor seu cinema criativo e autoral às salas escuras de tela grande de outros países (e até mesmo em mercados locais) quando desprovidos de uma grande produtora que lhes ofereça a influência e o capital necessários para tal. Nesse panorama, visualizam-se com mais nitidez as vantagens dos filmes locais em participarem dos festivais de cinema situados para além das fronteiras nacionais. Lançar um filme em um festival estrangeiro atrai, inclusive, maiores olhares da imprensa nacional. “Lá fora, a imprensa brasileira disponibiliza generosa atenção a um filme pernambucano ou de qualquer outra parte do Brasil que esteja participando ou concorrendo num festival internacional. Porém, se esse mesmo filme tivesse sua estréia aqui, numa sala do Recife, ele seria apenas mais um. Não possuiria um atrativo a mais para justificar uma cobertura ampla por parte da imprensa”, destaca o crítico de cinema Luiz Joaquim. Dessa forma, os prêmios conquistados nessas ocasiões, ou até mesmo apenas o convite para ser exibido em tais festivais, podem se desdobrar em mais olhares atentos ao cinema atualmente produzido em terras pernambucanas. Podem se traduzir também em maiores facilidades para um diretor encontrar interessados em patrocinar seus projetos e suas idéias, além de contribuir, na mais otimista das perspectivas, para que outros e futuros filmes do mesmo país ou estado disponham de semelhante atenção e curiosidade por parte do público, da crítica especializada e da imprensa estrangeira.

E o mais interessante de tudo isso é que a fidelidade dos cineastas pernambucanos à singularidade dos seus projetos e de suas idéias não foi rebaixada a um segundo plano ao longo dessa trajetória por telas estrangeiras. Assis, Caldas, Ferreira e Gomes, entre outros, querem, de fato, conquistar um público para os seus filmes. Porém, eles não fazem concessões. Pelo contrário, distanciam-se ao máximo de qualquer tipo de alteração ou intervenção externa visando a uma aceitação mais fácil e instantânea, afinal desejam conquistar o olhar dos espectadores com o filme que eles próprios idealizaram e fizeram. E, numa ode à verdade, vale destacar que nenhum dos filmes recentemente produzidos em Pernambuco recorre a fórmulas prontas que funcionam como senhas capazes de abrir a caixa registradora das bilheterias. Mesmo diante das dificuldades inerentes à produção e à distribuição de suas obras, os cineastas pernambucanos seguem, embora rastejando, no rumo oposto às tentações de um caminho que retira em liberdade o que disponibiliza sob a forma de facilidades.

Um exemplo que, sem sombra de dúvida, ratifica tal constatação foi o caso sucedido com Marcelo Gomes. Em meio ao desespero para encontrar financiamento para a finalização de Cinema, Aspirinas e Urubus, o cineasta pernambucano enviou uma versão não-acabada do seu filme para duas distribuidoras americanas. Uma delas devolveu o material sob a justificativa de que provavelmente havia algum problema na fita, pois o início do filme era só silêncio, desprovido de qualquer vestígio de diálogo. E a outra informou que o filme não poderia ser distribuído, visto que, nele, nada acontecia. Seria absurdo concordar e/ou se submeter a tais pensamentos, possivelmente deve ter pensado Gomes. Alguns meses e muitos desafios e obstáculos vencidos depois, a recompensa em numerosos festivais internacionais. Como maior saldo, mais do que a premiação em forma de dinheiro, de troféus e de novos contratos. Em seu lugar, o memorável reconhecimento de quem realmente é capaz de distinguir as qualidades de um bom filme: um grande cineasta. Após o lançamento de Cinema, Aspirinas e Urubus em Berlim, numa mesa de restaurante e na companhia de um chope e de Wim Wenders, Gomes escuta do famoso diretor alemão uma pergunta mais do que representativa (e repleta de elogios nas entrelinhas): “Marcelo, mas esse é mesmo o seu primeiro longa?”.

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