Os mais céticos exclamariam: “Quanta ascensão, nem parece um filme nacional!”

quarta-feira, 9 janeiro, 2008 às 10:20 | Publicado em José Bruno Marinho | Deixe um comentário
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A imagem do Brasil no exterior é, de fato, permeada por clichês e estereótipos. O olhar estrangeiro capta, a priori, o que lhe é diferente, o que lhe é estranho, eliminando todo o restante. Isso porque idéias pré-concebidas – congeladas por filmes que reduzem o diversificado celeiro de nacionalidades verificadas no continente a um único tipo “latino”, caricatural ao extremo – são reproduzidas em múltiplas línguas, em escala mundial, educando de maneira notavelmente errônea os espectadores mais desavisados e menos conscientes de até onde aquelas imagens apresentam consonância com a realidade. A estranha relação existente entre o estrangeiro e nós, brasileiros, é caracterizada por uma condição de diferença que, mais do que sentida, foi criada e imposta ao longo dos anos. Não raramente, o olhar de um público estrangeiro sente dificuldades em alcançar o além do clichê e, por isso, inicialmente estranha quando se depara, na tela grande, com uma mulher brasileira com um quê de raciocínio, por exemplo (“como assim ela não é apenas sensualidade?”, espectadores de outros países podem se questionar). Porém, durante décadas, muitos preferiram, uma vez passado o estranhamento inicial, reaceitar aquela idéia mitificada que já cultuavam há tempos – afinal, é mais cômodo e prático se submeter aos tentadores simplismos do senso-comum do que admitir a existência de realidades mais complexas.

No entanto, é justamente na contramão dessa prática de assimilar o irreal que podem ser encaixados os recentes filmes pernambucanos que fazem sucesso diante de platéias estrangeiras. Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2006); Baixio das Bestas (Cláudio Assis, 2007) e Deserto Feliz (Paulo Caldas, 2007) são exemplos de produções cinematográficas locais que conseguem comunicar e que têm seu valor reconhecido sem abandonar uma posição de fidelidade aos ideais de seus realizadores. Ou seja, sem ceder espaço à tentação dos estereótipos que facilitariam a compreensão (ou seria aceitação?) da obra fílmica Brasil afora. E, com isso, distanciam-se daquele obsoleto clichê de paraíso tropical onde o Carnaval, as mulheres bronzeadas e o futebol são onipresentes e imprescindíveis. E vão além: funcionam como um verdadeiro espelho que revela um panorama da história e/ou da sociedade local. Ao retratarem um Brasil a partir de uma realidade social, até certa parte, ainda inédita aos olhos externos, eles fazem do entretenimento um exercício de pensamento e continuam a encantar e a surpreender pessoas das mais distintas culturas e nacionalidades com um cinema de imagens gritantes que convida a pensar.

Na verdade, todo esse vigor do qual se alimenta a caracterização do cinema produzido atualmente em Pernambuco é fruto de um certo descontentamento e uma certa inquietude por parte daqueles realizadores que conviveram, por um longo período de tempo, com a ausência de condições favoráveis e estimuladoras à produção cinematográfica, vendo-se habitando um celeiro marcado pelo marasmo e pelo vazio. Sem uma estrutura de produção, ou seja, em meio à carência de recursos financeiros, técnicos e humanos, assim se iniciou a retomada do cinema pernambucano. Esta ocorreu mais pela vontade e iniciativa daqueles que pretendiam se consolidar na carreira cinematográfica sem precisar se deparar com a migração a outro Estado como condicionante para tal. E menos pela existência de um cenário que acenasse favoravelmente a uma mudança radical. Impulsionado pelo rancor e empenho destes poucos, o cinema pernambucano ressurgiu e, desde então, vêm sendo marcado por um conteúdo visceral, de imagens urgentes e mensagens diretas. Através de filmes autorais, marcados por notável singularidade, a produção cinematográfica local afronta uma indústria e um mercado que rejeitam o diferente e tudo aquilo mais que ainda não foi imposto o suficiente para ser considerado garantia de sucesso e, portanto, digno de investimentos. É como se, mesmo sendo produzidos em meio a tantas limitações, o os filmes pernambucanos fossem dotados de um vigor notável e estivessem sempre à espera que novos olhares (e por que não prêmios também?) surjam para registrar e difundir toda essa vitalidade.

Mais de uma década depois do lançamento de Baile Perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1997) – filme-chave da retomada do cinema pernambucano, pois pôs fim a um período de quase 20 anos sem a produção de longas-metragens locais -, a safra recente dos filmes pernambucanos vem sendo bem recebida dentro e fora das fronteiras nacionais. O nível das qualidades e dos acertos dessas obras fílmicas assim como do talento dos seus diretores pode ser medido, em especial, por meio da repercussão que obtiveram na maioria dos festivais nacionais e internacionais nos quais foram exibidos. No âmbito nacional, as participações e premiações em festivais vieram a ratificar Pernambuco como uma referência em se tratando de cinema. Nosso estado é tido, atualmente, como o principal pólo de produção audiovisual do País situado fora do eixo Rio – São Paulo. No panorama internacional, os inúmeros convites e prêmios de festivais trouxeram não apenas reconhecimento, como também prestígio artístico de alto padrão, algo que muitos filmes comerciais e com maior poder de penetração no mercado, ainda que muito tentem, simplesmente desconhecem.

O acesso dos filmes pernambucanos aos mais renomados festivais de cinema do mundo – Cannes, Berlim, Veneza, Roterdã, entre outros – tem se revelado freqüente nos últimos anos. Em 2003, Cláudio Assis viu-se participando, com o seu Amarelo Manga, do Festival de Berlim. Dois anos depois, foi a vez de Lírio Ferreira promover a estréia do seu longa Árido Movie na presença da platéia do Festival de Veneza. Em fevereiro do ano passado, Cláudio Assis surpreendeu novamente com seu mais recente filme, Baixio das Bestas, que conquistou um dos três Tigers de Melhor Filme da 36ª edição do Festival Internacional de Filmes em Roterdã, na Holanda. Além do troféu, o cineasta pernambucano dividiu, com os outros dois vencedores, a premiação total de quase dez mil euros oferecida pelo festival que já se consolidou como um dos eventos mais importantes do cinema independente mundial. No discurso de premiação, o júri creditou sua escolha pelo longa-metragem brasileiro como um dos premiados do ano à “crueza, energia e força visual em uma história contundente no processo de degradação moral e social de um Brasil de excluídos”. Além de valorizar o cinema visceral praticado por Assis, tal prêmio atraiu publicidade ao seu mais novo filme. Como conseqüência da consagração no festival, Baixio das Bestas foi exibido nos cinemas e na televisão pública da Holanda e mais: adquiriu a atenção dos produtores de outros festivais de cinema não apenas para a obra em si, mas, sobretudo, para o iniciante cineasta, o qual passou a gozar do respeito por parte dos profissionais da área. No dia seguinte à premiação, Cláudio Assis acordou com mais do que um prêmio de um festival que contou com mais de 300 filmes (entre curtas e longas) competindo entre si e foi prestigiado por cerca de 370 mil pessoas. Na verdade, ele encontrou em suas mãos o passaporte rumo a um caminho menos árduo na heróica jornada de conseguir financiamento de produtoras e co-produtoras para os seus projetos futuros.

Uma das maiores honrarias já experimentadas pelo cinema pernambucano data, porém, do lançamento estrangeiro de Cinema, Aspirinas e Urubus. O primeiro longa-metragem de Marcelo Gomes adquiriu mais de 40 prêmios em festivais nacionais e internacionais. Com uma história de ambientação regional – porém, de alcance universal -, o filme conquistou aplausos das mais diversas nacionalidades, arrancando também elogios nos idiomas os mais distintos. Exibido em 2005 na mostra Un Certain Regard (“Um Certo Olhar”) do Festival de Cannes, Cinema, Aspirinas e Urubus recebeu o Prêmio da Educação Nacional, concedido pelo Ministério de Educação da França. Em nota à imprensa, o júri da premiação justificou a escolha final de conceder o prêmio ao primeiro filme de Marcelo Gomes – entre aproximadamente 1.600 produções cinematográficas inscritas em tal mostra paralela – por enxergar no longa um cinema raro, incisivo e rigoroso, situado no terreno fronteiriço entre documentário e ficção e possuidor de numerosas trilhas artísticas e pedagógicas que fazem de Cinema, Aspirinas e Urubus um exemplo incontestável de uma obra de arte.

No Festival de Cannes, a repercussão do filme, que traz a história de uma amizade construída entre um nordestino humilde e um alemão fugitivo da guerra, foi particularmente grande. No discurso da entrega do prêmio ao cineasta pernambucano, os jurados afirmaram terem sido surpreendidos diante de um interessante e peculiar tratamento cinematográfico de uma história humana carregada de esperança e que oscila com maestria e segurança entre uma abordagem quase documental e um olhar extremamente poético. “Nós fomos seduzidos pelos dois personagens, tanto pela interpretação dos dois atores [o brasileiro João Miguel e o alemão Peter Ketnath] como pela composição e pela evolução dos personagens que eles interpretam, além da ambigüidade da sua relação com os outros e a reclusa dos clichês”. E, partindo da premissa de que – durante a realização de um filme – o diretor lida constantemente com expectativas e intuições que só serão correspondidas (ou não) quando da exibição da obra a um público, Marcelo Gomes deve ter, de fato, ficado tão emocionado quanto satisfatoriamente alegre com as palavras finais do discurso do júri acerca da sua primeira produção cinematográfica. Aquelas diziam: “Ainda que pertença a uma cinematografia pouco difundida, esse filme, que se insere na tradição cinematográfica do road movie e se inspira no neo-realismo, possui uma característica essencial do cinema, que é a capacidade de mudar o nosso olhar sobre o mundo”.

Em recente entrevista à Folha de S.Paulo, o diretor pernambucano traduziu em palavras toda a sua satisfação com os elogios da crítica francesa ao seu primeiro filme e com a premiação conquistada em Cannes. Questionado sobre o que representava para ele, um diretor nordestino que produz fora do eixo Rio – São Paulo, chegar ao ponto de ter logo seu primeiro longa reconhecido em tal festival, Gomes respondeu: “Eu acho que dá um alento para os cineastas que estão espalhados pelo Brasil. Mostra que é possível fazer cinema, basta ter determinação. Cannes está aberto não só para cineastas que têm uma cinematografia mais estabelecida. Está aberto para cineastas que vêm de Pernambuco também”. Não apenas Cannes, caro Gomes. Outros festivais também. Os fatos ratificam que a produção cinematográfica pernambucana, ao se permitir trilhar caminhos mais ousados e experimentais, tem recebido aplausos e elogios do público, contemplação e opiniões favoráveis por parte da crítica e premiações numa freqüência que surpreende e numa quantidade que impressiona. E o mais novo responsável por garantir a continuidade dessa fase incontestavelmente histórica e frutífera, tanto quanto inédita, para o cinema produzido e praticado em Pernambuco atende pelo título de Deserto Feliz. O filme do pernambucano Paulo Caldas, que só estreará nas telas nacionais no primeiro semestre de 2008, já construiu, porém, uma trajetória internacional. No ano passado, foi selecionado para integrar a concorrida mostra Panorama do 57º Festival de Berlim, na Alemanha, além de garantir a Caldas o prêmio de Melhor Diretor no Festival Internacional de Guadalajara. Em terras brasileiras, o reconhecimento do valor e das qualidades de Deserto Feliz descortina-se nos vários Kikitos conquistados pelo filme no último Festival de Gramado.

Enfim, o fato é que os cineastas fazem filmes para que estes sejam vistos e, quanto mais pessoas assistem a uma obra fílmica, mais realizado sente-se o seu diretor. Entretanto, por mais qualidades ou méritos que possuam, dificilmente os bons filmes nacionais conseguem impor seu cinema criativo e autoral às salas escuras de tela grande de outros países (e até mesmo em mercados locais) quando desprovidos de uma grande produtora que lhes ofereça a influência e o capital necessários para tal. Nesse panorama, visualizam-se com mais nitidez as vantagens dos filmes locais em participarem dos festivais de cinema situados para além das fronteiras nacionais. Lançar um filme em um festival estrangeiro atrai, inclusive, maiores olhares da imprensa nacional. “Lá fora, a imprensa brasileira disponibiliza generosa atenção a um filme pernambucano ou de qualquer outra parte do Brasil que esteja participando ou concorrendo num festival internacional. Porém, se esse mesmo filme tivesse sua estréia aqui, numa sala do Recife, ele seria apenas mais um. Não possuiria um atrativo a mais para justificar uma cobertura ampla por parte da imprensa”, destaca o crítico de cinema Luiz Joaquim. Dessa forma, os prêmios conquistados nessas ocasiões, ou até mesmo apenas o convite para ser exibido em tais festivais, podem se desdobrar em mais olhares atentos ao cinema atualmente produzido em terras pernambucanas. Podem se traduzir também em maiores facilidades para um diretor encontrar interessados em patrocinar seus projetos e suas idéias, além de contribuir, na mais otimista das perspectivas, para que outros e futuros filmes do mesmo país ou estado disponham de semelhante atenção e curiosidade por parte do público, da crítica especializada e da imprensa estrangeira.

E o mais interessante de tudo isso é que a fidelidade dos cineastas pernambucanos à singularidade dos seus projetos e de suas idéias não foi rebaixada a um segundo plano ao longo dessa trajetória por telas estrangeiras. Assis, Caldas, Ferreira e Gomes, entre outros, querem, de fato, conquistar um público para os seus filmes. Porém, eles não fazem concessões. Pelo contrário, distanciam-se ao máximo de qualquer tipo de alteração ou intervenção externa visando a uma aceitação mais fácil e instantânea, afinal desejam conquistar o olhar dos espectadores com o filme que eles próprios idealizaram e fizeram. E, numa ode à verdade, vale destacar que nenhum dos filmes recentemente produzidos em Pernambuco recorre a fórmulas prontas que funcionam como senhas capazes de abrir a caixa registradora das bilheterias. Mesmo diante das dificuldades inerentes à produção e à distribuição de suas obras, os cineastas pernambucanos seguem, embora rastejando, no rumo oposto às tentações de um caminho que retira em liberdade o que disponibiliza sob a forma de facilidades.

Um exemplo que, sem sombra de dúvida, ratifica tal constatação foi o caso sucedido com Marcelo Gomes. Em meio ao desespero para encontrar financiamento para a finalização de Cinema, Aspirinas e Urubus, o cineasta pernambucano enviou uma versão não-acabada do seu filme para duas distribuidoras americanas. Uma delas devolveu o material sob a justificativa de que provavelmente havia algum problema na fita, pois o início do filme era só silêncio, desprovido de qualquer vestígio de diálogo. E a outra informou que o filme não poderia ser distribuído, visto que, nele, nada acontecia. Seria absurdo concordar e/ou se submeter a tais pensamentos, possivelmente deve ter pensado Gomes. Alguns meses e muitos desafios e obstáculos vencidos depois, a recompensa em numerosos festivais internacionais. Como maior saldo, mais do que a premiação em forma de dinheiro, de troféus e de novos contratos. Em seu lugar, o memorável reconhecimento de quem realmente é capaz de distinguir as qualidades de um bom filme: um grande cineasta. Após o lançamento de Cinema, Aspirinas e Urubus em Berlim, numa mesa de restaurante e na companhia de um chope e de Wim Wenders, Gomes escuta do famoso diretor alemão uma pergunta mais do que representativa (e repleta de elogios nas entrelinhas): “Marcelo, mas esse é mesmo o seu primeiro longa?”.

Oxente, we have diamonds!

terça-feira, 8 janeiro, 2008 às 22:39 | Publicado em Amanda Diniz | 1 Comentário
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Numa pequena rua transversal a uma das principais avenidas da cidade, uma casa com pés e trilhos pintados de preto sobre a brancura das paredes se destacava. Deve ser aqui, pensei, é tem que ser. Esse pessoal de moda se destaca até na casa em que mora ou trabalha.

– Oi, eu vim pra fazer a entrevista com Melkzda… O ateliê dele é aqui mesmo?

– É sim, pode entrar. Vou lá dentro chamar ele.

Não é preciso dizer que entrar em um ateliê de um estilista é como entrar no mundo dessa pessoa, olhar por dentro do outro. É uma forma de invasão silenciosa, mas que, apesar de tudo, é invasão boa. Porque quem se mostra quer mesmo é ser visto. Especialmente no mundo da moda, onde a imagem é superlativa e as palavras são, muitas vezes, relegadas a segundo plano, plano B. Um simples clique pode influenciar uma coleção inteira, que é muitas vezes capaz de determinar roupas e comportamentos no mundo todo, dependendo do estilista de que se fala e do lugar de destaque que ele ocupe. Moda é imagem, imagem é moda e não há como fugir dessa relação. Sendo assim, a imagem tem um poder sem precedentes de ficar gravada na mente do espectador e é nesse ponto que qualquer profissional de moda tem que se apoiar para fazer sucesso. A memória é importante não só dentro dessa questão da perpetuação da imagem, como também no fato de que a moda é cíclica, tudo é reaproveitado, isto é, um estilo que foi criado no passado pode virar tendência e se encaixar perfeitamente nos conceitos das coleções atuais e é assim que a moda vai se renovando, a partir da interação entre seu passado e o que se vê hoje. A imagem pode ser considerada a ferramenta maior utilizada pela moda, pois é a partir dela que se criam os conceitos que vão (ou não) influenciar nas produções dos estilistas. Nesse sentido, abre-se espaço para a discussão sobre como essa imagem pode evoluir da categoria de imagem fotografada, estática, para um instrumento determinante do comportamento de uma pessoa ou até milhares de pessoas ao redor do globo. A partir do momento que um designer cria uma imagem na sua mente e a transforma em objeto tangível, ele está, de certa forma, lançando o modelo de comportamento que ele espera que certas pessoas tenham ao utilizar aquela roupa. Está, também, supondo as características daquela pessoa, uma vez que uma roupa quase sempre é capaz de mostrar, de certa forma, a personalidade de quem a usa. E, mais do que isso, está se mostrando, expondo sua personalidade, sua visão sobre determinado assunto que funcionou como norte de sua produção, e esse conjunto de coisas que o designer traz à tona com suas peças é que faz as pessoas acreditarem em um estilista e nas suas criações. O mesmo se aplica ao espaço em que esse profissional trabalha. É um espaço que por si só já define um pouco de quem o habita. Na vida de um designer como Melkzda, que trabalha e vende suas criações em seu próprio ateliê, esse processo de abertura de si mesmo é duplo, pois o visitante entra em contato com as peças dele e com o espaço mobiliado e decorado pelo próprio Melk. Dessa forma, esse processo de “mostrar-se” acaba se tornando algo quase diário, que faz parte do seu cotidiano, uma vez que o estilista tem seu ateliê aberto todos os dias, recebe pessoas todos os dias, sejam clientes ou mesmo admiradores e amigos e isso acaba se transformando em um processo de troca muito grande. Como já foi dito, quem se mostra, quer se visto, mas quem vê também tem algo a mostrar, a dizer. Mesmo que seja apenas falar sobre o que viu, o que não deixa de ser uma experiência fascinante de conhecimento do outro através não só das suas palavras, mas através de seu trabalho, daquilo que faz com paixão. Conhecer o outro também é importante no mundo da moda, uma vez que ela não é feita de um só, nem só de mãos e tecidos: é preciso que haja criatura para o criador e vice-versa, e, mais ainda, que o criador conheça a criatura para, aí sim, ser capaz de melhorá-la. A moda exige exibição de todas as partes e isso não é em nada negativo porque pessoas são sempre criaturas fascinantes, especialmente aquelas que têm o olhar inquieto e a mente borbulhante, 250 explosões por minuto, como Melkzda. Melk é o maior estilista pernambucano da atualidade e é conhecido por crítica e público pelo seu estilo único e, mais do que isso, extremamente particular de ver o mundo. Apesar da forte influência de suas experiências individuais, um aspecto marcante da moda de Melk é a universalidade, o poder de perder regionalismos excessivos e ganhar maior alcance e personalidade, através dos elementos exteriores a ele e ao habitat em que vive. E o ateliê de Melk não nega em nada a personalidade forte do artista. Em nada. Tudo naquela casa exala criatividade e efervescência: a mesa, confeccionada pelo próprio artista com jornais velhos, tinta e uma idéia vaga na cabeça; as paredes externas e internas, também pintadas por ele, as bolsas utilizadas na suas coleções anteriores espalhadas pelos cantos do ateliê e, claro, as roupas. Estejam elas penduradas em cabides nos locais mais inusitados ou mesmo na “arara” em que são normalmente expostas, as roupas de Melk falam por si só e se expressam em uma língua em que todos entendem, sem esforço, talvez só um pequeno esforço para captar todos os detalhes que Melk faz questão de colocar em suas criações. “Não faço moda pra ser o diferente ou pra ser só belo, porém sem conteúdo ou ilógico: eu faço moda pra dizer”. Nessa hora, eu pergunto olhando nos olhos dele: “dizer o quê? É verdade que a sua roupa diz algo, mas o que você quer que ela diga?” “Quero que ela diga tudo e que esse tudo soe de forma especial aos ouvidos de alguém que entenda a roupa e, de certa forma, se apaixone por ela, assim como eu faço ao ver minhas peças prontas”. É algo plenamente compreensível um estilista se apaixonar pelas próprias criações, porque, como já foi dito, muito daquele material ali pronto vem do designer, das entranhas e de coisas que ele não diria usando o objeto de estudo dos lingüistas. Ainda dentro dessa questão de se mostrar através das suas criações, entra em cena a influência do lugar onde a moda feita dentro do processo criativo. É inegável que a origem sempre influenciará no destino, não importa por que caminho se ande. Em moda não é diferente. Por mais que a moda dependa muito mais dos aspectos subjetivos de seu realizador, o local onde ele vive e as pessoas que vê e com quem convive possui influência nesse processo. Em Pernambuco, pelo fato de a cultura ser sempre lembrada como uma das mais ricas e permeadas de influências de diversas raízes, pode-se verificar um enorme apreço e até orgulho do povo pernambucano em relação às suas raízes culturais. O Pernambucano é tão apaixonado por Pernambuco que leva isso no sotaque, nas roupas, nos costumes e até mesmo na maneira de agir, o que gerou uma série de discussões sobre a chamada “Pernambucanidade”. São vários os aspectos que caracterizam a pernambucanidade. Um deles é o forte apreço pela produção cultural local, o que muitas vezes leva a um certo repúdio em relação ao que não vem do estado, especialmente ao que vem de fora do país. Essa espécie de xenofobia gera a criação do chamado “Pernambuco Way of Life”, isto é, a construção de uma identidade pernambucana, que compreende cultura, sociedade e comportamento. No campo da cultura, essa identidade pernambucana encontra respaldo na ascensão de uma cena local efervescente, que teve como centro irradiador o Movimento Mangue Beat, o qual trouxe de volta as raízes culturais e esse apego ao estado e, mais precisamente, à cidade do Recife. A partir de 1997, com a morte do líder da Nação Zumbi, um dos expoentes do movimento, Chico Science, o Mangue Beat começou a se modificar e criar novas formas de expressão, saindo um pouco da temática urbana e caótica tradicionalmente abordada por ele. É quando surgem as novas bandas pernambucanas como Mundo Livre S/A, Bonsucesso Samba Clube, Cordel do Fogo Encantado (que já ganhou destaque nacional), Mombojó e as mais recentes como Mula Manca e Parafusa. Não é nem preciso dizer que essas bandas encontraram uma grande receptividade dentro da ala “intelectual regionalista” do estado, que passou a comparecer em massa a tais shows e incorporar tais manifestações ao seu conceito de identidade pernambucana. É claro que uma cultura que coloca os seus produtos sempre acima dos demais não se restringe só ao campo cultural, tendo necessidade de se expandir para as manifestações sociais e os costumes de seus adeptos. Um dos setores da cultura fora do campo da produção audiovisual em que isso mais se manifesta é a moda. Isso porque o pernambucano tem um estilo muito característico de se vestir, o qual é quase sempre tido como clichê pelos que não o adotam. Trata-se da chamada “bumbice”, que já é uma contração do termo “bumba-meu-ovo”, inspirado no bumba-meu-boi, uma manifestação folclórica muito popular em vários estados do Nordeste, inclusive Pernambuco, que consiste na representação da morte e ressurreição de um boi, utilizando-se de personagens humanos e animais fantásticos. O bumba-meu-boi carrega sempre aspectos muito regionais do lugar em que se realiza. Em Pernambuco, a maior parte das roupas e adereços é confeccionada com chita, um tecido barato, utilizado nas vestimentas dos escravos até o século XIX, miçangas feitas de coco ou sementes, e sandálias de couro. Por caracterizar, simultaneamente, os festejos do bumba-meu-boi e o estilo de muitos dos pernambucanos ortodoxos, criou-se, a partir do bumba-meu-boi, o termo bumba-meu-ovo para definir esse estilo de se vestir e se comportar. É lógico que existem aqueles que estão na contramão do que se vê por aí. Em cultura e moda isso é, inclusive, fato recorrente, uma vez que são desses lugares que saem as cabeças mais revolucionárias da ordem vigente, ainda que seja uma revolução silenciosa e particular. Nadando contra a corrente desse regionalismo exacerbado no mundo da moda, que por muitas vezes ofusca o que não é de sua natureza, existem alguns estilistas que vem se destacando no cenário local e até nacional, no caso de MelkZDa. De certa forma, apesar de haver uma certa resistência ao novo, especialmente dentro da cultura bumba, é inegável esse fascínio que a novidade exerce sobre os olhos humanos, ainda mais em um lugar em que a cultura dominante abre pouco espaço para o que é de fora. Nesse sentido, aqueles que se diferenciam ainda que só um pouco da moda vigente conseguem destaque de forma rápida e intensa. Um exemplo disso é Melkzda, que começou a fazer roupas em 2000 e hoje já é um designer de renome no Brasil inteiro, participando, essa semana, do Fashion Rio, segundo maior evento de moda do país, realizado de 2 a 9 de janeiro na Marina da Glória. Outro exemplo bem-sucedido de moda pernambucana fora do circuito bumba é a Meketref, e dos integrantes da Meketref, uma marca pernambucana composta pelos estilistas Dane Amorim, Bárbara Formiga e Caio Vinícius, que também parte do princípio de fazer moda de acordo com influências pessoais e de outras culturas além da de sua terra natal. Esses dois exemplos – Melk e Meketref – ilustram o fato de que é possível, sim, sair do seguro e entrar em algo novo com classe e muito a se mostrar. Em entrevista com os integrantes da Meketref, foi comentado o teor de universalidade das criações do trio como uma característica que enriquece ainda mais suas criações e dá a elas o valor pelo que são e não mais pelo fato de serem ou não pernambucanas. Apesar dessa universalidade em relação a tempo e espaço, a Meketref não persegue essa idéia a todo custo: segundo eles, isso é uma coisa que aparece espontaneamente, não é uma regra de criação, uma vez que eles tentam fugir das regras. Ainda nesse assunto, deixaram bem claro que existe, sim, espaço para a moda e a cultura bumbas, uma vez que existe público para elas, no entanto, elas tentam apenas trazer algo de novo e diferente para acrescentar ao cenário pernambucano. Como já foi dito, moda é imagem e imagem é moda. Sendo assim, o que Melkzda e Meketref fazem e apresentam ao público é uma moda pura, fiel à imagem que a inspirou, sem bandeiras regionalistas e sem apelar para os clichês já tão vistos e usados por todos. São criações que são confeccionadas dessa forma pelo que de interessante aos olhos do designer possuem e não por pertencer a essa ou aquela cultura. É lógico, também, que o lugar onde a moda é feita sempre influenciará, de uma forma ou de outra, a produção de um estilista, mas é preciso saber delimitar o que e em que pontos isso influenciará e o quanto essa influência pode vir à tona sem comprometer ou deturpar o que se quer dizer. Fazer moda pernambucana que tem obrigação de se mostrar pernambucana é o mesmo que retratar o Rio de Janeiro apenas como calçadão, sol e mar, um julgamento bastante simplista e redutor de possibilidades. Pernambuco possui, sim, uma cultura forte e que deve ser defendida, mas é ingênuo associar o estado somente aos aspectos tradicionais ao invés de tentar fazer dele um ponto de convergência entre tendências diversas. No caso de Melkzda, que viveu sua vida toda em Pernambuco, a influência da cultura do estado não só existe, como aparece freqüentemente em seu trabalho, sem, no entanto, cair no óbvio ou no panfletário. Em uma de suas coleções, o estilista utilizou as mulheres de Sertão como inspiração e isso é, sim, pernambucano de essência, sem precisar recorrer obrigatoriamente ao maracatu, ao mangue beat ou aos materiais tipicamente oriundos do estado, como fazem freqüentemente os bumbas de Recife. Tudo isso sem deixar de ser universal nem perder nada em luxo e glamour. Com a Meketref, o mesmo acontece. O trio lançou recentemente uma coleção inspirada nos jogos, divididos em três modalidades: jogos de tabuleiro, jogos eletrônicos e RPG. À primeira vista, a coleção foi bastante universal, podendo ter sido feita no Rio, São Paulo, Nova York ou Milão, no entanto, um olhar mais cuidadoso “entrega” a pernambucanidade deles, como os próprios estilistas reconheceram. E é essa atitude de se mostrar como realmente é, sem rótulos e estigmas pré-concebidos, carrega em si o princípio básico e universal da moda: a autenticidade.

 

 

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